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A Venezuela dos venezuelanos e a Venezuela do Maduro

A Venezuela dos venezuelanos e a Venezuela do Maduro

Por Frederico Afonso[1]

I – Introdução

A Venezuela é nossa “vizinha do norte”, especificamente fazendo fronteira com os estados do Amazonas e Roraima. São mais de 2 mil quilômetros de fronteira[2]. Não se trata de uma fronteira pequena!

Procurar “entender” um país, sem nele residir, sem tornar-se de fato um especialista, será sempre aventureiro, contudo, partirei de informações básicas, com dados confiáveis, temos um país com quase 29 milhões de habitantes[3]. Talvez numa comparação injusta da minha parte, o estado de São Paulo, no último censo de 2022 apontava aproximadamente 44,5 milhões de habitantes[4], ou seja, 50% a mais de habitantes. Por sua vez, a Venezuela possui uma extensão geográfica[5] três vezes maior do que a do estado de São Paulo[6].

Vamos tentar (isso mesmo, tentar!) encaixar a Venezuela no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e MERCOSUL.

II – A Venezuela e o MERCOSUL

O Tratado de Assunção (1991) formaliza a criação do “bloco”, ou melhor, do “Mercado Comum do Sul” – o MERCOSUL como é conhecido entre nós. Na condição de membros fundadores estão a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai, com a Venezuela aderindo posteriormente (embora atualmente esteja suspensa). A Bolívia efetuou o depósito em 08/07/2024 do instrumento de ratificação do Protocolo de Adesão daquele país ao MERCOSUL, o qual entrou em vigor 30 dias após, tendo assim adquirido a condição de Estado Parte, podendo participar com todos os direitos e obrigações, do MERCOSUL.

Os principais objetivos do MERCOSUL são a integração econômica (eliminação de barreiras alfandegárias e a criação de um mercado comum entre seus membros), a união aduaneira (visa a adoção de uma tarifa externa comum (TEC), que harmoniza tarifas para produtos de países fora do MERCOSUL) e a dimensão política (o MERCOSUL também promove valores democráticos e os direitos humanos). Merece todo o destaque que a Cláusula Democrática do MERCOSUL estabelece que a manutenção de regimes democráticos é essencial para a permanência de um Estado no bloco, como no caso da suspensão da Venezuela.

Visto o acima, vamos tentar encaixar a Venezuela: foi oficialmente aceita como membro pleno do MERCOSUL em 2012, após um longo processo de negociação que começou em 2006. Sua entrada foi favorecida por governos de esquerda na região, especialmente do Brasil e da Argentina, que buscavam uma maior integração regional com afinidades políticas. Em 2017, a Venezuela foi suspensa do MERCOSUL por não ter cumprido com as obrigações de incorporação de normas e tratados do bloco, especialmente nas áreas de direitos humanos e democracia. A suspensão foi justificada pela violação da cláusula democrática do MERCOSUL, que exige o respeito às instituições democráticas por todos os seus membros.

III – A Venezuela e a Organização dos Estados Americanos (OEA)

A Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma organização internacional fundada em 1948 com o objetivo de promover a paz, segurança, democracia e direitos humanos nas Américas.

A OEA possui 35 membros (34 excluindo Cuba[7]), dentre estes a Venezuela.

É sabido que a partir de meados dos anos 2000, a relação da OEA com a Venezuela está marcada por tensões políticas, jurídicas, sociais e econômicas no país. O problema começa no governo de Hugo Chávez, e mais intensamente sob Nicolás Maduro, tendo a Venezuela adotado uma postura de confronto com a OEA, acusando a organização de ser influenciada por interesses dos Estados Unidos (EUA) e outros países contrários ao seu regime. A crise humanitária e as denúncias de violações de direitos humanos pela administração de Maduro tornaram a Venezuela um foco de atenção nas reuniões da OEA.

Em 2017 a Venezuela anunciou sua saída da OEA, acusando o organismo de interferência em seus assuntos internos. O país formalizou sua retirada, mas o processo levou dois anos para ser completado, de acordo com as regras da organização. No entanto, a OEA continuou a monitorar a situação no país, denunciando a repressão política e o colapso das instituições democráticas.

III.1. A Venezuela e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH)

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, foi assinada em 1969 e entrou em vigor em 1978. Ela é o principal tratado do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), tendo como principal objetivo de proteger os direitos humanos nas Américas, estabelecendo um conjunto de direitos civis, políticos e, mais tarde, econômicos, sociais e culturais, que devem ser garantidos pelos Estados signatários.

A Venezuela foi um dos países, tendo 1977 ratificado o tratado, ou seja, comprometendo-se a respeitar e garantir os direitos consagrados nele, como o direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, e a proteção judicial eficaz. Sabemos que ficou apenas na promessa!

Em setembro de 2012, sob o governo de Hugo Chávez, a Venezuela anunciou sua retirada da Convenção Americana, processo que se concluiu em setembro de 2013. Essa decisão foi uma resposta direta às condenações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) por violações de direitos humanos, que o governo considerou uma interferência em sua soberania.

IV – A República Federativa do Brasil em suas relações internacionais

O Brasil deveria ser regido pela sua Lei Maior, ou seja, a Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988, a qual, infelizmente, tornou-se uma simples “folha de papel”, abordando aqui o chamado “sentido sociológico” das constituições, ideia materializada por Ferdinand Lassalle, em seu livro ¿Qué es una Constitución?, defendeu que uma Constituição só seria legítima se representasse o efetivo poder social, refletindo as forças sociais que constituem o poder. Caso isso não ocorresse, ela seria ilegítima, caracterizando-se como uma simples “folha de papel”. A Constituição, segundo a conceituação de Lassalle, seria, então, a somatória dos fatores reais do poder dentro de uma sociedade.

Nossa Constituição há tempos não representa o efetivo poder social, mas apenas o poder que a Suprema Corte deseja, utilizando várias vezes de uma “hermenêutica elástica”.

No art. 4º da Constituição Federal, há uma relação obrigatória de princípios que o país deve, veja bem deve adotar, não há discricionariedade nesse caso, portanto, trata-se de norma vinculante. Vejamos:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:

I – independência nacional;

II – prevalência dos direitos humanos; (g.n.)

III – autodeterminação dos povos;

IV – não-intervenção;

V – igualdade entre os Estados;

VI – defesa da paz;

VII – solução pacífica dos conflitos;

VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;

IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;

X – concessão de asilo político.

Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações.

O Brasil tem uma obrigação constitucional (mais do que legal) de dar prevalência aos direitos humanos.

V – Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) de 2024

O Brasil, como de costume, abriu, por meio do seu presidente da República os discursos dos chefes de Estado.

Esperava-se algum protagonismo nessa fala, mas…, segundo Juanita Goebertus, diretora da Human Rights Watch, o “Silêncio de Lula sobre Venezuela na ONU é lamentável”[8]. Ela também afirmou que “Não é momento para manter silêncio. O Brasil e a Colômbia podem e devem fazer muito mais para impulsionar uma transição para a democracia e fazer a vontade popular valer”.

O editorial do jornal “O Estado de São Paulo” de 27 de setembro de 2024 – O umbigo de Lula[9] afirmou que “[…] Quando olha para seu umbigo, o presidente Lula da Silva imagina ver o mundo. A passagem do demiurgo pela Assembleia Geral da ONU foi um retrato penoso de sua decadência e da desmoralização para a qual ela está arrastando a política externa brasileira. […] Em uma cúpula “pela democracia” e “contra o extremismo” promovida pelo Brasil, esvaziada e só com lideranças de esquerda, o chileno Gabriel Boric desmoralizou sem meias palavras a pusilanimidade de Lula em relação à Venezuela e outras ditaduras”.

Conclusão

A Venezuela dos venezuelanos se perdeu há algum tempo, nos idos ainda do Hugo Chavez.

O “chavismo” se perpetuou e tornou-se a “Venezuela de Maduro”.

Na Venezuela de Maduro, as “eleições” de 2024 não foram fraudadas, pois partiríamos do princípio de alguma fraude ocorrida, um documento apresentado fraudado, um vídeo fraudado etc., mas não ocorreu, foi pior, foi tomada “na mão grande” como afirma-se coloquialmente. Só falta o Nicolás Maduro afirmar “perdeu Mané” para o Edmundo González, o presidente eleito de fato.

Na Venezuela de Maduro, o território de Essequibo é deles (da Venezuela), conforme uma decisão de Caracas em abri de 2024 de aprovar uma lei criando um novo Estado nos 160.000 km² que ambos os países consideram seus provocou a revolta de Georgetown[10].

Na Venezuela de Maduro, o MERCOSUL não é importante, pois a Venezuela de Maduro tem sua “própria política de direitos humanos” e assim foi afastada do bloco em 2017.

Na Venezuela de Maduro, a OEA não é mais importante, talvez por seu principal objetivo ser o de proteger os direitos humanos nas Américas. Desta vez não foi afastada, mas requereu a saída (2017).

Na Venezuela de Maduro, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), principal instrumento do SIDH por agregar a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgãos fiscalizadores do sistema, foi mais uma “vítima” da Venezuela, pois, também se retirou (2012/13), talvez porque o principal objetivo da Convenção seja proteger os direitos humanos nas Américas e seus órgãos fiscalizadores (CIDH e a Corte IDH) examinaram durante anos várias denúncias de violações de direitos humanos na Venezuela, como repressão política, uso excessivo da força e violações à liberdade de expressão[11], sua retirada (Venezuela) é autoexplicativa!

Na Venezuela de Maduro, a ONU não serve para nada além de proteger os EUA.

Na Venezuela de Maduro, o presidente Lula se acovarda, não enfrenta o tema, fica refém das ideias de seu assessor para assuntos internacionais Celso Amorim.

Na Venezuela de Maduro, o Supremo Tribunal Federal (STF), guardião supremo da Constituição Federal, não enxerga violação ao art. 4º, inciso II, ou seja, também se acovarda.

Na Venezuela de Maduro, o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, nunca balbuciou algo, talvez por estar ocupado com outras questões…

Não cabem na mesma linha “ditadura e direitos humanos”. Onde não há democracia, não há direitos humanos!

Todos acima são omissos, todos desrespeitaram e desrespeitam nossa Lei Maior e imaginar que o presidente Lula foi um dos constituintes…

Nosso Brasil precisa ajudar a Venezuela voltar a ser dos venezuelanos!

 

Referências bibliográficas

 

BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e interpretação constitucional. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo : Celso Bastos Editor, 2002.

CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L.; LEONCY, Léo F. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. 3. ed. São Paulo : SaraivaJur/Almedina/IDP, 2023. 2.616 p.

LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 28. ed. São Paulo : SaraivaJur, 2024.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 40. ed. São Paulo : Atlas, 2024.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. 11. ed. São Paulo : SaraivaJur, 2024.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 10. ed., rev. atual. e ampl. São Paulo : JusPodivm, 2024.

[1] Professor. Escritor Jurídico. Advogado (membro permanente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP e membro da Comissão de Direito Militar da Subseção de Santos). Membro da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos (ReBEDH). Master’s student of Science in Legal Studies, Emphasis on International Law pela MUST University (Flórida/EUA). Mestre e Bacharel em Ciências Policiais de Segurança Pública e Ordem Pública pelo Centro de Estudos Superiores da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Mestre e Bacharel em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos e pela Universidade São Francisco respetivamente. Especialista em Direitos Humanos, gestão da segurança e ordem pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Especialista em Direitos Humanos e em Direitos Humanos Aplicado pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e pela Faculdade CERS respetivamente. Especialista em Direito Constitucional e em Direito Constitucional Aplicado pela Faculdade CERS e pela Faculdade Legale respectivamente. Autor pela SaraivaJur, Forense, Método, Foco, Rideel dentre outras. Atualmente coordena a pós-graduação em Direito Militar pela Faculdade Legale. Leciona Direitos Humanos na pós-graduação do Damásio Educacional, no Curso CERS, na Escola Paulista de Direito, no Centro de Altos Estudos da Polícia Militar do Estado de São Paulo, na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (SP). Professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

[2] A fronteira do Brasil com a Venezuela tem extensão de 2.199,0 km, dos quais 90,0 km são por linhas convencionais e 2.109,0 km por divisor de águas. Estados que fazem fronteira com a Venezuela: Amazonas e Roraima. www.gov.br/funag/pt-br/ipri/arquivos-ipri/arquivos-estatisticas/fronteiras-terrestres-brasil-13052015.pdf. Acesso em 27 set. 2024.

[3] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/dados-venezuela.htm. Acesso em 27 set. 2024.

[4] https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/panorama. Acesso em 27 set. 2024.

[5] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/dados-venezuela.htm. Acesso em 27 set. 2024.

[6] https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/panorama. Acesso em 27 set. 2024.

[7] Em 3 de junho de 2009, os Ministros de Relações Exteriores das Américas adaptaram a Resolução AG/RES.2438 (XXXIX-O/09), que determina que a Resolução de 1962, a qual excluiu o Governo de Cuba de sua participação no sistema interamericano, cessa seu efeito na Organização dos Estados Americanos (OEA). A resolução de 2009 declara que a participação da República de Cuba na OEA será o resultado de um processo de diálogo iniciado na solicitação do Governo de Cuba, e de acordo com as práticas, propósitos e princípios da OEA.

[8] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/silencio-de-lula-sobre-venezuela-na-onu-e-lamentavel-diz-diretora-da-human-rights-watch/. Acesso em 27 set. 2024.

[9] https://www.estadao.com.br/opiniao/o-umbigo-de-lula/. Acesso em 27 set. 2024.

[10] https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgxdwe57w1vo. Acesso em 27 set. 2024.

[11] Ao menos 1.619 pessoas foram detidas como “terroristas” durante a temporada eleitoral. Confirmou-se a detenção de 158 crianças “em alguns casos, as vítimas foram meninos e meninas com deficiência”. Leia mais em: https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/onu-mostra-como-ditadura-de-maduro-prende-e-tortura-ate-criancas. Acesso em 27 set. 2024.

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